23 fevereiro 2012

OS AVANÇOS DA BIOLOGIA PERANTE O ESPIRITISMO



Os avanços da Biologia perante o Espiritismo 
Jorge Cecílio Daher Jr

            O Espiritismo surgiu em uma época em que a Ciência alcançava notáveis feitos. O final do século dezenove assistia às descobertas das ruínas dos Incas, à decifração dos hieróglifos egípcios e às escavações dos templos gregos; a mecânica impulsionava a indústria com suas descobertas, o microscópio seria o instrumento de perquirição da Biologia e levaria o homem a devassar seu corpo, para curar doenças e buscar suas origens.
            A época de Kardec é a época de Darwin, antecede em pouco a época de Mendel, e é a época da glória da sociedade burguesa, do caldeirão das filosofias de exaltação do homem que nos levaria a duas grandes guerras, sem que perdêssemos a empolgação com as conquistas, tornando a Ciência, definitivamente, possessão do homem, que pretensamente o guindou a pés de igualdade com a divindade.
            Charles Darwin, talvez o homem de Ciências mais notável de sua época, não inventou a idéia que o homem descende do macaco, derrubando a mitologia judaico-cristã da descendência adâmica. Coube a ele muito mais além de concluir que o homem e o macaco tiveram, em alguma ocasião temporal, ancestrais comuns, do mesmo tronco, que depois se diversificariam sob a força natural que coube a ele desenvolver com primazia, a seleção natural. Seleção natural não é a lei do mais forte, mas sim a constatação que os seres evoluem graças a mutações em sua programação, capazes de fazê-los modificar sua interação com o meio externo, tornando-os, nessa interação, mais aptos a sobreviverem. As idéias de Darwin influenciam não apenas a Biologia, mas também a Filosofia, a Psicologia, a Sociologia.
            Muitos se utilizam de sua teoria com fins notadamente racistas e muita polêmica gerou no meio acadêmico o livro A Curva de Bell[1], uma abordagem unilateral e distorcida, que associou a miséria de negros e hispânicos a questões raciais, de seleção de uma raça mais apta, no caso os brancos caucasianos, sobre as demais. Os autores dessa obra esqueceram do grande legado de Darwin, que diz: “Se a pobreza e a miséria de um homem foi causada não pelas leis da Natureza, e sim por nossas instituições, grande é nossa sina.”
         Separados pelo distante tempo interior, pois se Darwin se interessava 
pelo palco da Ciência, o monge Gregor Mendel vivia distante da Academia. Unidos pela visão comum de enxergar questões onde encontramos respostas, Mendel, por seu amor à 
Botânica e acurado senso científico descreveu as leis da hereditariedade e as regras por elas seguidas e permitiu ao homem a estruturação da idéia de transmissão de um sistema de memória capaz de determinar características dos pais aos descendentes, que hoje sabemos estar em sequências de DNA que chamamos genes. A Genética começa com Mendel mas esse ramo do conhecimento científico apenas o descobriu no século XX, apesar de seus trabalhos datarem do final do século XIX, mais precisamente 1885.
            A caracterização que os cromossomas são formados de DNA, e que esse é composto de ácidos nucleicos pareados, que suas sequências formam uma espécie de alfabeto que codificam a formação de componentes das proteínas, gerou-se uma corrida para determinar a forma estrutural do DNA. Coube a Linus Pauling a descoberta que as proteínas tem estrutura tridimensional e algumas delas uma estrutura helicoidal, mas o mérito quanto ao DNA coube à dupla Watson e Crick, que descreveram o DNA como dupla-hélice, que se abre na sua face interior para a “leitura” do alfabeto genético.
         A sequência de nucleotídeos que formam cada um dos vinte aminoácidos essenciais do organismo humano, seguida do avanço na codificação das sequências genéticas e localização dos genes nos cromossomas, abriu as infindáveis possibilidades de pensar e sonhar que a mente humana é capaz. Os genes tornaram-se explicações de tudo o que ocorre no homem, quer em seu organismo quer em sua vida de relação, quer ainda em seu estado mental, sua capacidade de amar, de ser egoísta ou altruísta. Poderosos, os genes foram vistos como o código de Deus nos seres vivos que agora o homem era capaz não apenas de identificar, mas de manipular.
         Conta-nos a mitologia grega que Zeus, o supremo deus do Olimpo, vendo que Prometeu, que criara os homens, detinha enorme prestígio e poder, desceu à terra em seu carro de fogo, e tirou dos homens a luz, num castigo ao titã e às suas criaturas. Em meio à escuridão que reinava, partiu em rota ascendente ao Olimpo, mas Prometeu, com um graveto, rouba o fogo do carro de Zeus, devolvendo aos homens aquilo que lhes havia sido tirado. Os deuses ficaram furiosos e prepararam vingança. Coube a Afrodite criar Pandora, uma mulher belíssima que trazia em suas mãos uma caixa, onde todas as pragas que abateriam os homens estavam comprimidas, saindo assim que fosse a tampa retirada. Não aceitando o presente de Afrodite, Prometeu, cujo nome significa o que pensa antes (de agir), talvez não imaginasse que seu irmão, Epimeteu, que significa o que pensa depois, ficasse encantado com Pandora e pedisse o presente a Afrodite. Epimeteu recebeu Pandora e sua caixa, que, depois de aberta, espalhou sobre os homens todas as pragas e maldições ainda hoje conhecidas e que nos afetam. Da caixa de Pandora, a última a sair será a Esperança.
         Impossível não relacionar o presente recebido por Epimeteu, principalmente a caixa que Pandora trazia, com o momento em que vivemos no que tange às conquistas da Biologia. Desde a década de sessenta que a genética molecular alcança progressos incríveis no diagnóstico de doenças raras, desde o período intra-uterino. Muito se fala em tratamento gênico de doenças, bastando identificar o gene deficiente e substituí-lo. Até hoje, mesmo conhecendo os genes de doenças letais, ainda não se foi capaz de promover terapia gênica adequada. Muita expectativa se criou entre os portadores de Fibrose Cística, mas ninguém foi curado por terapia gênica.
            Para entender um pouco da caixa de Pandora e tudo que dela sai afetando os homens de ciência,  os colegas médicos da Associação Médica Católica da Inglaterra e Gales chamaram nosso momento na Biologia de “o homem brincando de ser Deus”.
            Desde a década de 50 os investimentos na Genética Molecular são 
enormes, não faltando verbas de pesquisas e isso propiciou a capacidade de sequenciar e manipular genes. À época do projeto Genoma Humano, especulava-se muito sobre as descobertas que estariam no cromossoma 22, pois dali sairia a cura da Esquizofrenia, a doença mais cara do mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde. Nada se descobriu, para a frustração de muitos cientistas. Isso não impediu de sequenciar-se genes importantes e outros ainda pouco conhecidos. Questão de grave impacto, quando tratamos de manipulação gênica, é a evidência de que permanece vivo o Eugenismo, que é a tentativa de aprimoramento da raça humana. Essas idéias marcaram dolorosamente o homem durante o Nazismo, quando atingiu o clímax no sacrifício de milhares de judeus, na quase erradicação dos povos ciganos, no uso de cobaias humanas em experiências somente permitidas com animais.
            A eugenia é uma idéia atuante na mente de alguns brilhantes cientistas que, ou não se apercebem do risco, pelas consequências que o homem já experimentou, ou simplesmente desconsideram qualquer risco em favor de seus ideais. O racismo em estudos científicos sempre foi encoberto por elaborações estatísticas complexas, que manipulam dados em favor de determinado objetivo, ou é encoberto por visão culturalmente compassiva. O conhecido psiquiatra forense italiano, que se consagrou no Espiritismo a partir de sua conversão, Césare Lombroso, defendia que os criminosos tinham um crânio típico, menor em volume, que se apresentava exteriormente pela fronte pequena, mãos e pés grosseiros e sulcos faciais acentuados. Assim eram os criminosos que Dr. Lombroso conheceu, alguns cérebros que analisou, mas são características de uma população que vivera à margem de qualquer conquista social na Europa do século passado.
            Hoje a Eugenia está presente nas propostas de concepção a partir de Fertilização In Vitro após cuidadosa análise genética dos embriões, descartando os menos aptos em favor dos que são chamados de amostra selecionada pelos profissionais comprometidos com a venda de descendentes perfeitos. Fazem às avessas aquilo que a Natureza faz de modo aleatório, escondendo uma sabedoria capaz de ser analisada apenas sob as vistas da Moral, despida de moralismo barato, mas sustentada por uma visão que garanta ao homem a autonomia e a dignidade desde as formas iniciais de vida.
            Autonomia e dignidade devem ser respeitadas no homem desde sua fase embrionária, faz com que a manipulação gênica de embriões fira profundamente esses princípios chave da Bioética? Caso consideremos o embrião como dotado de vida, a partir de quando isso se dá legalmente? A Inglaterra, tentando manter-se à frente em tecnologia de manipulação gênica de embriões, publicou texto regulatório chamado “The Human Tissues and Embryo Bill”, em 2006, que permite a qualquer tempo a manipulação de embriões e células-ovo, criação de quimeras, embriões transgênicos e clonagem de embriões humanos, com fim unicamente científico, sem se preocupar com qualquer questão ética.
            Ao manipularmos genes de embriões, buscando aprimoramento de raças, gerando vidas que são sacrificadas a centenas para preservar uma vida, até que ponto nos comprometemos nessa brincadeira de fazer de conta que somos Deus? É inegável a necessidade do aprimoramento científico, mas não justifica o sacrifício de vidas humanas quando alternativas outras são visíveis e viáveis. O simples fazer para mostrar-se ao mundo lembra-nos muito a sentença do Eclesiastes: “Vaidade das vaidades, tudo no mundo é vaidade, não existe nada de novo sob o sol”.
            O Espiritismo traz o conceito transcendente de vida, que não se inicia 
no berço, nem se encerra no túmulo. Se a visão muçulmana, expressa pela Shari’ah Perspective on Stem Cells Research[2], permite a manipulação gênica de embriões por entender que a alma se liga ao embrião a partir do 40º dia, muito ainda tem a Ciência a avançar, inclusive para determinar quando a ligação do espírito com o corpo efetivamente se dá no estrito senso da palavra ligação.
            Os genes não transmitem caráter, não dão as características da alma. Quando o projeto genoma demonstrou que temos poucos genes a mais que os animais vulgares, como camundongos, muitos deixaram o queixa cair. Aqueles que afirmaram em alto e bom tom: “Dêem-me o programa genético que farei um homem”, pouco falaram, agora já sem o tom bravatoso. Muitos pensaram ter descoberto o Espírito, não para exaltá-lo, mas para rebaixá-lo a epifenômeno, não do cérebro, mas resultante dos genes. Caindo na realidade, a programação genética serve apenas para estocar informações para o maquinário celular. Ela não explica as sinapses cerebrais, pois precisaríamos de um número de genes três vezes maior que o contido em nosso DNA para justificar as sinapses já conhecidas, que contam-se a menos de um terço das que possivelmente existam. DNA é molécula encontrada em células mortas, não significa vida, tanto é que é encontrada em fósseis. DNA sem o maquinário celular nada pode fazer além de fornecer informações, como uma estante que carrega livros, estoca códigos. Quem faz o que conhecemos biologicamente por vida é a célula, esse ser microscópio quem utiliza as informações dos genes no processar de seu metabolismo.
            André Luiz, em seu livro Evolução em Dois Mundos, dá ênfase à célula, um non-sense na opinião de muitos, um anacronismo, na opinião de outros, mas uma sabedoria, na opinião de poucos. Naquela obra, afirma o autor que no campo de estudos a que ele se filia, 
naquele estágio de conhecimento que se encontravam, estavam eles 
estudando a estrutura mental da célula.
            Para ilustrar um pouco as repercussões da capacidade obtida, que são extremamente complexas, comecemos com o episódio ocorrido com o casal do estado do Colorado, nos EUA, pais de uma filha que apresentava Anemia de Fanconi. Essa doença rara e grave é passível de cura através de transplante de medula óssea, mas o sucesso dobra de 40% para 80% quando o transplante é feito a partir de células do cordão umbilical de doador plenamente compatível. Os pais de Molly haviam tentado, através de Fertilização In Vitro, por quatro anos, um embrião geneticamente compatível para salvar Molly. Adam Nash nasceria após ser o escolhido entre 15 embriões, o único capaz e fornecer as células do cordão umbilical que salvaram Molly[3]. Mais de 900 testes genéticos foram realizados nos embriões e 14 deles foram descartados em detrimento do embrião perfeito, capaz de fornecer células de cordão umbilical para a menina doente.. O que serve de reflexão é que uma apurada técnica obtida a partir de sérios e prolongados estudos, permitiu que, para salvar-se uma vida, mais de uma dezena de embriões fossem gerados, testados e sacrificados, pois apenas um foi implantado e mesmo assim com a finalidade única de servir como doador de células-tronco capazes de dobrar a taxa de sucesso na tentativa de cura de sua irmã. Por mais que o médico responsável por esse tratamento diga que o sucesso obtido justifica qualquer sacrifício, mesmo de vidas, não se pode deixar de lembrar que estudos mostram que células-tronco obtidas de adulto podem se diferenciar e se comportar adequadamente, além do que já existem bancos de cordões-umbilicais, extraídos de fetos gerados com os fins habituais ou acidentais, que podem fornecer material àqueles que são compatíveis imunologicamente.
            Outro caso que chamou a atenção da mídia, encontrando repercussão, foi o de uma jovem mulher, de pouco mais de 30 anos, portadora de grave síndrome neurológica, de origem genética, que submeteu-se à Fertilização In Vitro, gerando um número grande de embriões, que foram geneticamente testados para a doença que a mãe era portadora, e os afetados foram descartados, os pouquíssimos preservados foram congelados para uso futuro, pelo desejo ardente dela de deixar descendentes.
            Os testes genéticos muitas vezes são oferecidos como um pacote para descobrir-se as doenças que acometerão o indivíduo no futuro, numa clara enganação de incautos, quer pela imprecisão dos testes, quer pela não seleção dos testados, quer pelo desconhecimento que o gene não gera por si só a doença. Muito se tem explorado, muito dinheiro tem sido gasto para alimentar pavores infundados ou certezas cada vez mais incertas, em nome do ganho, da celebração da fama.
            A genética nunca esteve em tamanha evidência entre os leigos e não iniciados quanto a partir de 1997, ano em que foi anunciado, na 
Escócia, o nascimento de Dolly, primeiro ser vivo clonado através de 
uma técnica chamada Transferência de DNA. Os cientistas recolheram o material genético da mãe de Dolly e implantaram em células mamárias cujos núcleos foram esvaziados visando receber o material que formaria Dolly. A equipe do Dr. Willmutt formou 277 embriões e apenas um mostrou-se capaz de desenvolver, no caso a ovelha tão famosa.
            Com Dolly o vislumbre de clonar-se humanos passou a tornar-se realidade quase palpável. Número crescente de publicações dão conta da clonagem de vários animais de laboratório, a partir da transferência de DNA, gerando já uma estatística de taxa de sucesso de 2%, com um gritante fracasso de 98%. Interessantemente, desses 2% de sucesso, um número grande deles apresenta doenças graves e já são descritas pelo menos 150 doenças entre os animais gerados por clonagem através da transferência de DNA. O porquê da alta taxa de fracasso ainda não se sabe. Se o clone humano virou realidade entre nós, brasileiros a partir de novela global, a China anunciou, mesmo antes do médico italiano Severino Antinori, que tinha dez clones humanos. Estabeleceu-se uma corrida para saber-se quem será o primeiro a mostrar seu clone humano, um troféu que terá o prêmio não apenas da opinião pública, mas o grave peso político.
         A técnica que fez gerar Dolly é aparentemente simples, mas a pífia 
taxa de sucesso mostra como é complexo o processo. Quando o 
espermatozóide funde-se ao óvulo, descarregando seu material genético a fundir-se com aquele da célula receptora, esse par de cromossomos diferentes entre si, partindo de um estado de repouso engendra no mecanismo celular um processo de rápida multiplicação celular, o que virá a ser um embrião.
            Esse processo de reprodução a partir de cromossomas em repouso garante um risco mínimo de alterações nos cromossomas que, em alguns casos, geram doenças como a Síndrome de Down e em outros são incompatíveis com a vida. Na técnica de clonagem, uma célula receptora tem seu núcleo vazio preenchido pelo material genético do doador. Não se tem garantia de que esses cromossomas estão em estado de repouso e o fato de se ter uma probabilidade elevada de estarem atividade, faz surgir o alto índice de fracasso e, mesmo nos poucos casos de sucesso, o risco de alterações cromossômicas é grande. Isso nos leva fatalmente à pergunta para mais essa questão saída da caixa de Pandora, supondo o sucesso e a aceitação plena da clonagem humana, que tipos de desenvolvimento anormal deveremos aceitar? Aceitar para quem?
            Não esqueçamos que não estamos formando um objeto, mas estamos diante de uma vida humana que surge. Ainda refletindo sobre o que vai saindo da caixa de Pandora, superando essas questões graves sobre o desenvolvimento do embrião humano clonado, caímos em questões éticas mais graves. Se uma mãe tem um filho morto em acidente, mas dele é retirado tecido vivo, qual o limite a ser aplicado ao desejo dessa mãe em fabricar um clone dessa criança? Por mais que saibamos o processo gera corpos, e não espíritos, como mais adiante iremos debater, se é válido o desejo de substituir o filho morto por um geneticamente quase idêntico, será válido o desejo de outra mãe querer ter um filho sobressalente congelado no nitrogênio líquido, pronto para vir ao mundo após implante em um útero receptor, em caso de morte ou doença grave do original? Existe fronteira demarcada entre o desejo de uma e de outra?
         Continuando o raciocínio, um homem casado, pai de três filhos, por 
algum motivo é levado a clonar um embrião a partir de seu material 
genético, quem serão os pais de direito da criança, uma vez que 
geneticamente os pais seriam os pais daquele que forneceu o material 
genético. Essa criança não terá irmãos genéticos, pois não 
compartilhará da mesma carga genética dos filhos de sua matriz celular. Terá ele poder 
sucessório sobre o doador caso a esposa dele, o doador, não consinta com a adoção?
            Clonar seres humanos com finalidades reprodutivas tem gerado tanto problema atualmente que quase já não se fala nesse tipo de clonagem, não ser nas saudades da novela, pois a moda agora é falar-se em clonagem terapêutica, a utilização da clonagem para que se formem 
doadores de células-tronco, que se transformarão em qualquer tecido ou órgão humano. Chama a atenção que, em Março de 97, um mês após o anúncio de Dolly, o Senado Norte-Americano convocou reunião através de um comitê específico de Saúde pública, seguindo também a convocação presidencial e a instalação de um Comitê Nacional de Bioética. Tratando de clonagem reprodutiva, representantes das indústrias de biotecnologia anunciaram que não tinham interesse na clonagem reprodutiva, mas na utilização da técnica para clonagem terapêutica, para a fabricação de órgãos.
            Como falamos de indústrias, falamos de venda de tecnologia, ou seja de um comércio de seres vivos. O processo de clonagem terapêutica visa formar embrião de cerca de oito dias de vida, onde se apresenta a fase de blastocisto, momento em que o embrião está repleto de células-tronco, objeto dos almejados transplantes de órgãos. Até aqui o processo é o mesmo da clonagem reprodutiva, mas a partir dessa fase o embrião tem seu desenvolvimento interrompido, passando a ser apenas um rico banco de células. Como cada célula se diferencia em tecidos específicos não se sabe, mas já foi possível fabricar-se tecido renal implantando-se células-tronco em rim de bovinos. Essas células desenvolveram-se formando um aparelho renal. Detalhes do processo pelo qual ocorreu ainda é uma incógnita.
            O que é também grave é o fato que a clonagem terapêutica será oferecida a um 
custo, pois é uma técnica que está sendo desenvolvida com fins 
puramente comerciais, acima da questão humanitária, além do que, saindo mais um problema da famosa caixa, cumpre-nos questionar a questão venda de órgãos, no já existente mercado de órgãos humanos.
            Quem não se lembra da prostituta de “Os Miseráveis”, que, para manter 
a filha após o desemprego, vende inicialmente seu corpo, uma vez 
adoecida, vende seus cabelos e, por fim, os dentes. Victor Hugo acenava para um mercado real, que hoje existe sob a forte condenação dos preceitos éticos, mas que tende à legalização através do reconhecimento de patentes, não de órgãos ou células humanas, pois são proibidas, mas de técnicas de clonagem, de armazenamento de embriões e de manipulação desses embriões para o desenvolvimento de órgãos e tecidos.
            Um número crescente de transplantes de coração se dá pelas 
consequências dos processos isquêmicos, como a doença arterial 
ateromatosa, que gera angina, infarto e insuficiência do coração. As 
causas desses problemas são multifatoriais, a incidência deles é 
crescente, apesar das várias intervenções sobre a população, ao longo 
dos anos. Ter a possibilidade de um coração reserva a desenvolver-se se necessário for é consoladora talvez, mas nos lembra muito o caso de Molly, que teve a vida salva por seu irmão, que apenas nasceu para esse único objetivo, fato de relevância moral, existir para curar outro, não por ter sido desejado como pessoa.
            Os transplantes de órgãos realizam-se com uma taxa de sucesso 
importante, chegando, no caso de transplante de rins, a uma sobrevida 
de 85% em dez anos, isso desde a década de 80, graças à descoberta de uma substância imunossupressora chamada Ciclosporina. Essa droga revolucionou os transplantes, mudou todos os parâmetros de sobrevida.
            Os argumentos a favor da clonagem terapêutica pesam pela escassez de doadores em todo o mundo mas o peso de se usar órgãos como mercadorias os prudentes, engana os afoitos. Continuando a sair da caixa, mais uma questão se põe à reflexão: uma vez desenvolvida a técnica de clonagem terapêutica, é justo que toda a população tenha um clone como reserva técnica de órgãos? Aqueles que já nascerem com problemas não podem fazê-lo, pois o clone também teria problemas, mas não seriam esses com predisposições e doenças genéticas os que mais seriam favorecidos com o transplante de órgãos obtidos a partir de células-tronco? Para confundir um pouco mais, estudos de há poucos anos mostram que pâncreas transplantados a pacientes diabéticos também desenvolveram diabetes, após 11anos, em 100% dos casos. Com órgãos fabricados a partir da reserva de um embrião clonado teriam destino diferente? Infelizmente, creio que a resposta ainda é não. Continua aberta a caixa de Pandora, dela saindo todas as pragas e males que o homem poderia experimentar. Todavia, lembra-nos a Mitologia que a última coisa a sair da caixa que trazia a bela Pandora era a Esperança. Apesar de todos os males, de todas as pragas, deveria por último dali sair um sentimento de renovação, mostrando que os deuses do Olimpo não condenaram perpetuamente a humanidade e que o mito de Pandora talvez seja o mito da ciência moderna. Para nós, essa Esperança tem nome, poderíamos chamá-la de Consolador, sem que carreguemos o rótulo religioso, mas ampliando sua perspectiva a todos os movimentos de regeneração surgidos na Terra, desde o final do século XIX e unificados pelo Espiritismo.
            Cabe à Ciência Espírita o estudo do Princípio Espiritual e sua relação com o Mundo Espiritual, sendo a mediunidade um instrumento para se alcançar esse fim. Assim nos diz Allan Kardec em A Gênese, ao tratar da aliança da ciência material com a ciência espírita. Ao distinguir duas ciências, pois utilizam elas meios, materiais e métodos totalmente diferentes, não quis Allan Kardec separá-las, mas vislumbrava a união dessas fontes de saber, que trariam ao homem não somente o conhecimento de si mesmo enquanto ser biológico, mas de suas origens, sua destinação final, seu real objetivo na Terra. O Codificador percebeu que a Ciência teria um limite, que não avançaria além das leis materiais e a aliança com a Ciência Espírita, que trata do que está além da matéria, seria a instrumentação que propiciaria o conhecimento pleno e útil ao homem. Mas a tão esperada aliança entre as ciências espírita e material ainda não ocorreu.
            Especificamente na questão da clonagem, que causa espanto a muitos, como se relaciona o princípio espiritual com o corpo que se forma? Existe total identidade entre clone e doador? O que transmitem os genes, realmente? A idéia que transmitimos pelo sangue características não apenas do corpo, mas também as características da alma, sempre esteve presente entre os homens e passou a se fazer mais forte desde o final do século XIX, reforçado pela Ciência, a mãe de todas as descobertas que impulsionaram o homem ao auge conquistado no século XX e ainda hoje desfrutado. O romance do genial Charles Dickens, chamado Oliver Twist é exemplar modelo dessa idéia.
            O primeiro encontro de Oliver Twist e o pequeno trapaceiro Jack 
Dawkins numa rua de Londres mostra o contraste entre eles. Oliver, 
filho de nobre donzela, deixado órfão em uma instituição, apesar de 
criado sem qualquer requinte de educação, longe das finezas da corte, 
e, ressalta o autor, sem qualquer manifestação de amor, tem a postura 
digna, a face fina, de nariz afilado, cabelos louros e cacheados e, 
muito mais, a inata postura nobre, não arrogante, porém recheada pela 
honestidade, pelo brio do caráter, pela força do espírito. O jovem 
menino de rua, ao contrário, tem a face grosseira, nariz achatado, como 
qualquer menino de rua. O romance mostra que Oliver, em sua jornada ao encontro de suas origens, tem essa postura nobre herdada pelas características de seu sangue, pois é nobre como os pais, que transmitiram a ele esse poder, o poder da natureza, contra a natureza. A idéia que transmitimos características muito além de físicas,  mas morais, através de nosso sangue persiste ainda hoje, mas já não chamamos mais de sangue nobre, mas, talvez, de genes nobres.
            Existe um estudo onde o caule de uma planta mãe foi dividido em três porções e cada uma dessas partes plantadas em altitudes diferentes. Essas plantas eram clones da planta original, que serviu de modelo de comparação. A depender da altitude, as plantas reagiam de modo diferente, gerando plantas outras distintas em maior ou menor intensidade em relação à matriz.[4]
         Outro ponto de estudo interessantíssimo é o da evolução dos 
rinocerontes. Temos dois tipos de rinocerontes, que surgiram no mesmo período cronológico, um na África, que tem dois chifres no nariz, outro na Índia, que tem apena um pequeno chifre em seu nariz. Partiram da mesma matriz e não se explica a diferença entre eles por alterações em seus genes. O que está além dos genes e nos toca diretamente o sentido, chama-se fenótipo. Por fenótipo podemos descrever todas as palpáveis, mensuráveis do ser vivo, as plantas geneticamente idênticas têm fenótipos distintos, o mesmo se dá com os rinocerontes. O que faz a diferença de resultados entre o que seria esperado para determinado genótipo e o fenótipo efetivamente encontrado é chamado pela ciência de normas de reação.
            Essas normas de reação são as alternativas de resultados oferecidos ao genótipo, que podem ser totalmente distinto do esperado. Se ainda não se pode descrever os fatores responsáveis pelas normas de reação que interferem no genótipo para a formação de fenótipos (seres!) distintos, permitam-nos especular, vamos buscar no 
Princípio Espiritual, objeto da Ciência Espírita, a causa! Ao campo mental das células, que já é um fator a determinar normas de reação distintas, sobrepõe-se o campo mental do espírito, expresso através do perispírito que, ao reencarnar, impõe sua programação própria, sua identidade. Esse ser complexo, descrito como energético por partilhar de leis sutis e interferir nas leis biológicas que regem o corpo físico, influenciado por essas leis enquanto reencarnado e no instante mais ou menos longo da desencarnação, serve de molde, não de cópia, para comportamentos celulares únicos, no campo hoje limitado da genética.
            Os estudos do Dr. Ian Stevenson, principalmente seu último livro, chamado A Biologia em Face da Reencarnação, mostram a ocorrência de marcas de nascença, que ocorrem no ser reencarnante sem substrato genético, relacionando com eventos que geraram a morte traumática do ser, em reencarnação imediatamente anterior. O Dr. Ian Stevenson publicou o trabalho com o peso de um autor consagrado no meio científico, respeitado pela seriedade de seus trabalhos, ocupando dois volumes de obra extensamente documentada.
            Mais que fatores genéticos a influenciar nos resultados do fenótipo, 
existem características humanas como a linguagem, o comportamento, as emoções, que não são transmitidas geneticamente. O clone de um 
brasileiro criado no Japão, falará japonês, pois a linguagem não é 
transmitida pelos genes. Sua capacidade mental será única e poderá ser totalmente distinta de seu molde, pois as sinapses cerebrais não 
obedecem modelos genéticos para seu desenvolvimento. Mais que isso, o clone poderá apresentar doenças que jamais serão apresentadas pelo molde, uma vez que alterações estruturais nos cromossomas são muito plausíveis de ocorrer em clones.         O Espírito é elemento constitutivo da Natureza e anima as formas materiais dos seres vivos, inicialmente como princípio espiritual, mas nas formas humanas encontram a plenitude do que entendemos por marcas do Criador em cada criatura, de forma mais vibrante e desafiadora, somente no homem o princípio espiritual torna-se Espírito com conotação moral, pois somos seres morais. Se temos a de gerar e aprimorar corpos, não temos a capacidade de gerar espíritos. A primazia sobre o corpo não é obtida através dos genes, mas a partir do corpo espiritual que o espírito reencarnante traz. Ainda que tentemos aliviar doenças, porque algumas doenças são perfeitamente evitáveis, talvez estejamos distantes da capacidade de aliviarmos sofrimentos. O ser não sofre porque adoece ou tem a morte próxima.
Esse erro é da visão utilitarista da sociedade ocidental, desenvolvido nos últimos 60 anos. Paradoxalmente, a necessidade de erradicar-se toda forma de sofrimento, desde as mais legítimas, que dizimam pela miséria vidas inocentes, até as mais bizarras, que visam retardar o envelhecimento e prolongar a vida no corpo, vendem a idéia de que tudo o que é contrário ao bem estar físico é causa de sofrimento. Os espíritos amigos, tratando da medida da felicidade que podemos obter, lembram-nos, em O Livro dos Espíritos, que temos um senso que diz o que é abuso, que são nossos sentidos. A comida excessiva, que às vezes gera prazer, é causa de doenças que matam mais que a fome; as emoções obtidas por experiências quase extremas, desequilibram a homeostase; a necessidade de ser feliz, traduzida pelo consumo de bens pouco duráveis, pelas aparências que não enganam a si mesmos, por não viver conforme as próprias convicções, ou não ter qualquer convicção própria, geram a depressão e a demência.
            Ante as pragas saídas da caixa de Pandora, calmamente espera o Espiritismo sua vez de ser auscutado pelos homens, pois é o hino de esperança a lembrar-nos que nossa pátria verdadeira não se conta entre os limites do mundo físico, que somos essencialmente espíritos, que nossos corpos são sagradas vestes, mas apenas vestes que teremos de despir quanto estiverem rotas e sem serventia.



[1] Herrnstein R.J. , Murray C, The Bell Curve, 1994, Free Press
[2] Shari’ah Perspective on Stem Cells Research, citada em http://www.islam101.com/science/stemCells.htm
[4] Lewontin R., The Triple Helix, 2000, Harvard Press

06 fevereiro 2012

NAS FRONTEIRAS DA EPILEPSIA - Dr. Nubor Facure


Dostoiewisk e Machado de Assis, portadores de epilepsia, utilizaram-se de protagonista de seus romances para descreverem suas próprias crises. Vultos ilustres da História tiveram epilepsia, mas, para o homem comum, é na sarjeta das ruas que ele costuma tomar contato e se amedrontar com a violência da crise convulsiva.

Embora Hipócrates tenha feito em seus escritos uma brilhante descrição da crise do Grande Mal, indicando o cérebro como o responsável por toda essa sintomatologia, a Epilepsia foi tida como uma doença mental pelos séculos afora e só depois do surgimento da Neurologia, no século passado, é que a Epilepsia passou a ser compreendida com uma síndrome decorrente de uma lesão orgânica no cérebro.


Hoje entende-se a epilepsia como uma descarga elétrica desorganizada que atinge os neurônios cerebrais, provocando sintomas correlacionados com a área cerebral afetada.

Embora os relatos mediúnicos do porte de No Mundo Maior e Nos Domínios da Mediunidade ditados pelo Espírito André Luiz, façam descrições inconfundíveis de sintomatologia epiléptica em seus protagonistas, submissos à interferência espiritual francamente obsessora, a medicina de hoje rejeita qualquer presença espiritual na gênese de crises epilépticas, especialmente pelo temor de ver ressurgir a nefasta participação de "demônios" dos antigos textos bíblicos, versão da qual a Idade Média e a Inquisição souberam tirar proveito.
Os exames sofisticados de hoje identificam os traumas, as infeções, os tumores e as degenerações entre diversas outras causas de natureza orgânica para a etiologia da Epilepsia, entretanto, nenhum desses exames está apropriado para detectar as vibrações do plano espiritual que nos fariam compreender mais profundamente a natureza essencial do problema da Epilepsia.

Nem sequer de longe pretendemos excluir a gênese cerebral da manifestação epiléptica, mas a visão exclusivamente materialista da Medicina tradicional a envolve de um obscurantismo estúpido que não lhe permite identificar um outro universo de interferência situado na dimensão espiritual que, como causa ou como agravante, interfere na freqüência e na constelação de sintomas que o epiléptico manifesta.

Negando a interferência do Espírito, a Medicina não consegue enxergar que, através do próprio estudo da Epilepsia, ela teria muito o que aprender, por exemplo, com o que os pacientes epilépticos vivenciam durante as chamadas "crises psíquicas", nas quais observa-se uma riqueza de expressão clínica cognitiva, que o simples desarranjo de neurônios em "curto-circuito" não tem argumentos para justificar.

Na classificação das crises epilépticas, a Neurologia destaca um tipo de crise chamada Crise Focal ou Parcial em que não há comprometimento da consciência e a sintomatologia será decorrente do local no cérebro afetado pela descarga neuronal desorganizada. Na área motora, o paciente irá apresentar contrações musculares na mão, no braço, na perna ou em qualquer outra parte do corpo correspondente à região motora do cérebro afetado.

Numa área sensitiva, os sintomas serão referidos como adormecimentos, sensações estranhas ou deformações no membro atingido.

No grupo das crises focais é que estão incluídas as crises psíquicas nas quais o paciente relata sensações subjetivas que experimenta espontaneamente, podendo ter duração de minutos, horas ou dias.

As descrições clássicas das crises psíquicas fazem referência mais comumente às crises de "Dejá vú" e de"Jamais Vú". Esses dois quadros são reconhecidos como decorrentes de lesões na base do cérebro na região dos lobos temporais.

No "Dejá vú" (já visto), o paciente relata uma sensação de familiaridade com o ambiente ou com as pessoas, mesmo que lhe sejam estranhas e que ele as esteja vendo pela primeira vez. Num local que lhe seja completamente desconhecido, o paciente, ao ter sua crise, sente uma forte impressão de que já conhece ou já esteve naquele lugar.

Na crise do "Jamais vú" (jamais visto), o paciente manifesta sensação de estranheza em lugares conhecidos ou por pessoas da sua convivência.

Ambas as situações que descrevemos podem ocorrer ocasionalmente com qualquer pessoa normal, mas, no epiléptico, essas sensações são comumente repetitivas e duradouras.

Muitos epilépticos apresentam crises psíquicas freqüentes mas que têm merecido pouco destaque por parecerem corriqueiras, como as mudanças súbitas de humor, um entristecimento súbito ou uma agressividade imotivada e desproporcional que pode beirar a violência.

Neste artigo, estou interessado em relatar outros tipos de crises psíquicas, relativamente raras, em que os próprios pacientes têm muita dificuldade em achar termos adequados para descrevê-las. Elas merecem, ao meu ver, um estudo meticuloso, procurando-se valorizar as verdadeiras sensações dessas experiências subjetivas, que os pacientes procuram nos passar, sentindo inclusive, com freqüência, a incredulidade que a maioria dos médicos manifesta ao ouvi-los.

Os relatos dessas crises, à primeira vista, parecem inconsistentes, inverossímeis, superficiais, misturando-se com os sintomas da própria ansiedade com que os pacientes convivem quando vítimas desse tipo de crise. Elas podem ser muito demoradas e não tem o caráter ictal de subtaniedade das crises convulsivas. Não há uma afetação da consciência mas sim da percepção de funções complexas como da noção de tempo, do espaço, da realidade, do movimento, da noção do Eu e até do pensamento.

Essas várias sensações no nível de vivência psíquica do indivíduo, a mim parecem fornecer preciosa observação da fronteira entre as experiências vividas física ou espiritualmente por esses pacientes.

Uns poucos relatos que fizeram esses pacientes ajudaram-me a confirmar que o mundo mental de cada um de nós transita numa dimensão espiritual que transcende a experiência física.

Um deles é médico, freqüenta meu consultório desde garoto, por ter convulsões decorrentes de neurocisticercose e, recentemente, procurou-me, acompanhado da esposa, com uma certa inquietação, tentando relatar que, nos últimos dois dias, tinha perdido a capacidade de acompanhar a passagem do tempo. Não era a identificação do tempo, das horas ou do dia e da noite. Ele dizia ser uma perda da "noção do tempo". Os acontecimentos processavam-se na sua mente e quando ele se dava conta, esses acontecimentos já tinham acabado de ocorrer. Ao dirigir-se para seu consultório, conduzindo seu carro pela estrada, fazia as curvas, mas sempre com a idéia de que isso não lhe tomava tempo, porque ocorria na sua mente, literalmente falando, antes de acontecerem fisicamente. O que tinha em mente, do trajeto que percorria, não era uma imaginação, era o próprio acontecimento. Dizia que não lhe fazia sentido o antes ou o depois, porque, tudo o que ocorria em seqüência, ele vivenciava ocorrendo simultaneamente. Sua esposa o auxiliava como auxiliar de anestesia e na entrevista me contava que apesar de permanecer o tempo todo com essas sensações que descrevia. Ele procedia normalmente enquanto anestesiava seus pacientes, apenas dizia que toda atitude que tomava já lhe parecia ter ocorrido não como uma premonição, mas com um acontecimento "já feito", se assim podemos dizer, por ele, e, ao terminar a anestesia, para sua mente, os fatos lhe pareciam continuar acontecendo.

A neurologia descreve, também um estado de crise psíquica em que o paciente tem a sensação constante de estar vivendo um sonho. É chamado de "Dreamy States" pelos clássicos.

Tivemos dois pacientes que nos relataram episódios em que sentiam uma alteração no que eles chamavam de "realidade". Uma jovem senhora referia que essas sensações a perturbavam a anos, principalmente à noite e se estivesse perto de muitas pessoas. Isto a deixava insegura. Parecia fazer as coisas por instinto. Insistia em dizer que nas crises tinha a sensação de estar vivendo em um "estágio antes da realidade".

Um outro paciente com crises semelhantes a acrescentava que também tinha a impressão de "não estar vivendo a realidade" e tudo que fazia, para ele, "não tinha conteúdo emocional".

Duas crianças e dois adultos jovens, que já acompanhávamos por antecedentes de convulsões, nos relataram episódios de percepção alterada no movimento dos objetos e do próprio pensamento.

Ouvi deles expressões do tipo: "os movimentos das coisas e das pessoas parecem aceleradas": "quando estendo as mãos para pegar um objeto, parece que meus gestos são muito rápidos"; as pessoas atravessam a rua muito depressa"; "fica difícil atravessar a rua com os carros todos correndo"; "tudo ao redor parece estar acelerado"; "as pessoas parecem falar muito rápido". Um dos garotos dizia ser acordado pela crise. Para um deles, o seu próprio pensamento, quando em crise, parecia acelerado.

Nessas horas ele evitava o diálogo com receio de demonstrar aos outros alguma perturbação. Um desses pacientes, com 23 anos, é pintor e dizia que nas crises sentia que tudo passava lentamente, seus próprios gestos ao lidar com o pincel lhe pareciam ser feito em câmara lenta, embora seus colegas não confirmavam essa vagareza. Ele se sentia assim por mais de uma semana seguida, entrando e saindo das crises sem qualquer motivo aparente.

Uma senhora que também acompanhávamos por ter desmaios, tinha um eletrencéfalo com alterações focais no hemisfério esquerdo e uma tomografia cerebral típica de neurocisticercose. Ela contava que vinha tendo episódios em que parecia se deslocar, sentia-se estar muito longe, "como se num outro mundo", "ocupando um outro espaço". Esses episódios duravam 20 minutos e, a seguir, mantendo-se sempre muito lúcida, ela sentia a cabeça vazia, ficava pálida e ofegante. Outros quadros, mais complexos e às vezes muito elaborados, têm sido rotulados como alucinatórios e comumente relacionados com as disritmias do lobo temporal ou as patologias do sono.

Alguns pacientes dizem sentir-se fora do corpo, sensação que a neurologia chama de "despersonalização". Para outros, os objetos que vêem ou os sons que ouvem, estão aumentados, diminuídos ou distorcidos. Às vezes há uma concentração de cenas e episódios memorizados e o paciente, num relance, recapitula toda a sua existência. Dá-se o nome de "visão panorâmica" da vida.

Tivemos, entre muitos outros, o caso de uma garota de nove anos que nos consultava devido manifestações comuns de epilepsia.

Ela nos relatou que por algumas ocasiões, estando absolutamente desperta, se sente saindo do seu corpo em completa lucidez. Numa dessas últimas crises estava sentada no sofá, assistindo televisão quando, subitamente, se vê, ao lado do corpo físico. Questionei sobres seus medos nesta hora e qual sua atitude ao se ver nessa duplicidade.

Ela respondeu-nos com muita simplicidade que, assustada, procurou se dirigir para perto da televisão para ver se o seu corpo ali sentado a acompanhava.

Os quadros que descrevemos não surpreenderiam qualquer neurologista habituado a atender casos de epilepsia. Seguramente serão atribuídos à presença de distúrbios da atividade neuronal, especialmente do lobo temporal e a maioria deles vai se ver livre dessas crises com medicação disponível para atuar especificamente nas disritmias dessa região.

É curioso, entretanto, que, essas descrições, os relatos de como esses pacientes vivenciam ou "decodificam" a noção do sentido do tempo, da apreensão da realidade, da relação espaço-tempo no deslocamento dos objetos, da síntese e projeção do pensamento, nos permite despretensiosamente conjeturar uma série de semelhanças com certas descrições não acadêmicas na literatura espiritualista.

Os textos especializados em descrições sobre técnicas de meditação, por exemplo, revelam que os "grandes mestres" e "místicos" que atingem os graus mais profundos de interiorização da consciência, fazem interessantes descrições em ralação ao sentido do tempo, ao espaço ocupado pela matéria, à velocidade das partículas de matéria/energia que sintonizam, bem como, o turbilhão do fluxo do pensamento, descrições estas, que ao meu ver, têm correspondência muito provocativa com as dos epilépticos que aqui registramos.

Para nós, espíritas, os conceitos de tempo no mundo espiritual, de espaço na dimensão extra-física, de projeções do pensamento, de deslocamento do corpo espiritual podem ser facilmente reconhecidos nessa série de histórias que registramos. As lesões objetivas que a massa cerebral evidencia nesses quadros são, para mim, nada mais que portas de intercessões entre as duas dimensões, a expressão física de uma realidade que o corpo nos permite palpar e a percepção espiritual que vivenciamos sem os sentidos perceberem.

(*) Núbor Orlando Facure, é médico neurocirurgião e espírita. Director do Instituto do Cérebro de Campinas – São Paulo, ex-Professor Catedrático de Neurocirurgia da Unicamp (Universidade de Campinas), escritor e expositor espírita, foi entrevistado em exclusivo no Brasil pelo Jornal de Espiritismo no Instituto do Cérebro que dirige desde 1987.